ZONA DE CONFORTO?


Os políticos, os economistas, os spin doctors dessas novas formas de viver, de trabalhar, de pensar, de agir estão sempre a convidar-nos a sair da nossa zona de conforto. Por oposição, existe assim uma zona de desconforto, é isso? A primeira é-nos supostamente demasiado favorável, acomoda, amodorra, adormece, alegam. A segunda, por baptizar, é a que merece primazia, porque nos obriga a sair do sítio, nos obriga a mexer, nos faz supostamente crescer, avançar, evoluir. Ninguém nomeia essa zona de desconforto, e assim não se sabe bem o que é e onde fica. É para aqui, é para ali? Ah pois, é também suposto cada um procurar por si próprio essa tal zona.

Assim, sem nome nem nada, a única alternativa que nos propõem ou avistamos é afinal outro tabuleiro com o mesmo jogo. Mais do mesmo? ‘Faites vos jeux! Faites vos jeux!’, instam-nos a jogar, parar não, que a máquina não suporta isso, que emperra. E a máquina não pode emperrar! Sim, mas jogar, outra vez, com as mesmas regras um jogo igual? Para quê? Com que finalidade?
Outra pergunta: quem nos convida tão benevolentemente a sair da nossa zona de conforto quer afinal que saiamos de onde para ir para onde? Não fomos moldados por eles para estarmos exactamente no lugar onde estamos? Não é isso que fazem a escola, a família, a sociedade, a universidade, o empregozito? Fomos esculpidos e talhados para entrar no molde pré-fabricado, no lugarzito que desenharam para nós, desbastados de todas as impurezas, calosidades e talentos naturais, para entrarmos bem na casa certa, limpos de todas as excentricidades natas, para servirmos a grande máquina artificial a perpetuar-se a si própria.

- CÍRCULO VICIOSO -
Não vivemos, existimos! Oprimidos num círculo vicioso de atividades imbecis, taylorismo 3.0 repetitivo e alienante, em empregos de merda ou trabalhos ocos e supervacâneos. Vivemos sempre com hora marcada, acorda com o despertador, apanha o autocarro, não chegues atrasado, não faltes à ‘runião’, atende o telefone, verifica a agenda no telemóvel, oito horas para trabalhar, oito horas para dormir, oito horas para existir perdendo tempo em afazeres e deveres sem sentido. No dia seguinte, repete, bis, disco riscado. Mergulhamos no dia-a-dia como para dentro de água mesmo sem saber nadar, vivemos em apneia e de olhos fechados. Sabemos o que aí vem e mesmo se no fundo não queremos, e apesar de abobinarmos, vamos na mesma. Vamos e voltamos, vai-vem indolente, para um emprego que nos consome tempo e energia vital e com o qual não nos identificamos. E consideramos todos estes comportamentos normais. Pior, naturais. Pior ainda, inevitáveis, uma fatalidade obrigatória da condição humana. Somos como o hamster dentro da gaiola, correndo na sua roda, rumo a destino nenhum, destinados a repetirmos os mesmos actos e gestos todos os dias invariavelmente ao infinito.
Tudo isso para quê? Para ganhar o sagrado graal, um prémio, prémio monetário: 1, 2, 3, diga lá outra vez. Este prémio monetário é gentilmente ofertado de 30 em 30 dias, de lua a lua, mas já não é pago em sal, agora diz-se salário, e são bocados de papéis que nos dizem que valem x ou y… e nós para jogar temos de acreditar. Com essas fichas valiosas em mão fazemos o quê? Aleluia, podemos comprar, acumular, adquirir sempre mais. E podemos continuar a jogar, rola o dado, não vai para a prisão, cai na casa da electricidade, paga a factura, paga a água, compra a Rua do Ouro, paga o pão, a renda da casa, o crédito do carro, a escola dos miúdos, o seguro de vida, as fériazinhas por que todos merecemos, passa pela casa de partida, recebe mais umas notas, continua a jogar. Que maravilha! Venham todos, é pró menina e prá menina, não há que enganar, este é o único caminho, ponto final.
É assim, pensamos, temos de ser eternos jogadores neste tabuleiro fatal, nunca desistir da jogatina, da jiga-joga, do jogão, para provarmos que pertencemos a um sistema social e económico que é suposto validar-nos, reconhecer-nos, valorizar-nos, e que se apresenta como o único e exclusivo caminho possível, o único paradigma da existência.

- À PROCURA DO TEMPO PERDIDO -
Mas estamos enganados. Esse sistema artificial – construído e edificado gloriosamente com pilares, bases, fustes, capitéis, naves, pináculos, flechas que esqueceram o ser humano cá em baixo –, somos apenas um número entre milhões na enorme roda dentada, igual a milhares de outras rodas dentadas, que giram e se vão encaixando em mais rodas dentadas, e esse enorme emaranhado de rodas faz inexoravelmente avançar um mecanismo dantesco que a maior parte das vezes não nos quer bem, porque nos trata como se fóssemos alheios ao mecanismo.
Mas o que esse mecanismo artificial – chamemos-lhe a sociedade urbana por oposição ao conceito de sociedade humana, em que o ser humano deve estar no centro das preocupações! – não sabe ou faz por esquecer, e quer levar-nos na enxurrada desse rio do olvídio, é que ele próprio se insere num mecanismo ainda maior, um polígono googólgonesco maior do que 100 mil universos, maior do que todas as distâncias de Planck, e tanto que se dobra nas pontas e tende a transformar-se em esfera de universos um dentro do outro, como matrioshkas, bonecas russas, multiversos sem princípio nem fim, na única e verdadeira máquina, a máquina natural, mas que nos parece tantas vezes tão enigmática e avassaladora que a consideramos anti-natural. E, no entanto, chamamos-lhe Natureza ou Mundo, e Cosmos ou Universo. Esse é o nosso caminho natural. Nós é que esquecemos de onde viemos e muito menos podemos assim saber para onde vamos.
Então de que zona de conforto falam, da que foi criada por vós para nós? Sair do vosso tabuleiro para jogar noutro tabuleiro igual que interesse tem? Por acaso tomam-nos por tolos?

- CICLO VIRTUOSO -
Está na hora de sair, sim, dessa zona cheia de artifícios e esquemas, das nossas sociedades complicadas e complexificadas, e voltemos ao nosso caminho natural, o caminho da comunhão com a natureza e com os animais, não do domínio, experienciar em vez de acumular, usufruir em vez de possuir, viver em vez de existir. Reencontremos o nosso desconforto primevo que é o nosso verdadeiro conforto natural, reexploremos as sendas desenhadas pelas pegadas dos nossos pais ancestrais na areia molhada das praias ou nos trilhos das densas e verdejantes florestas. Volvamos à pradaria original, percorramos de novo a estepe, desbravemos e redescubramos o caminho inicial. Mas sem nos perdermos desta vez de nós mesmos e de quem somos verdadeiramente.
Retornemos ao tempo em que tinhamos tempo de observar o céu com vagar como se fosse algo novo todas as manhãs, ao tempo em que nos deixávamos maravilhar com a lenta e majestosa transumância das nuvens durante dia e com a deambulação bela e secreta das estrelas à noite. Voltemos ao tempo em que tínhamos tempo de viver.
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José Luís Correia
JLC08072021

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